REMINISCÊNCIAS DA
PROFISSÃO
(por Maynard Marques de
Santa Rosa)
Na guerra, o que é
moral está para o que é material, assim como 3 está para 1(Napoleão Bonaparte).
Napoleão
intuiu perfeitamente o valor da motivação como indutor do poder de combate e da
liderança como catalisador dessa energia. Seu mais célebre adversário, o Duque
de Wellington, afirmou que a simples presença do Imperador no campo de batalha acrescia
o poder de combate francês com o equivalente a uma divisão inteira.
Há pouco
tempo, o povo do Vietnã demonstrou para o presidente Gerald Ford que camponeses
raquíticos altamente motivados eram capazes de superar o poderio militar mais
pujante que já existiu na História. Portanto, a força moral da dimensão humana
é o que realmente conta, e não a riqueza material.
A
conjuntura atual do nosso País mostra uma estabilidade aparente, semelhante à paz
dos pântanos, onde o impacto de um pedregulho provoca uma onda que traz à tona
a lama do fundo e a espalha pela superfície. O que deu causa à insalubridade
social existente foi a ausência de dissuasão militar durante a crise de
transição de governo. Para entender que se trata do desfecho de um longo
processo, passo a descrever o produto da minha observação pessoal ao longo da
vivência dos altos escalões, a partir de 1995.
A
autoridade militar no Brasil vem sendo mitigada, progressivamente, pela legislação.
O processo é deliberado e imita a metáfora do sapo cozido, isto é, “Aumentando-se
a temperatura da panela, gradualmente e de forma sutil, o sapo não reage e se
mantém acomodado, até que, ultrapassado o limite suportável, ele morre”.
A
escalada começou na Constituinte de 1988, sob motivação revanchista. A “Constituição
Cidadã” extinguiu o Conselho de Segurança Nacional (CSN), que representava a
expressão militar no cenário político e tinha poder de veto dos empreendimentos
nas áreas de Segurança Nacional, como a Faixa de Fronteira. Após extinto,
passaram a proliferar as reservas indígenas, quilombolas e ambientais na
Amazônia, patrocinadas por milhares de ONGs estrangeiras. E o Poder Militar
ficou representado pelos ministros militares.
Em 1995,
o governo do PSDB deu um impulso à escalada, com a introdução do conceito de
teto histórico no orçamento militar e a redução de poder imposta aos comandantes
militares de áreas, que perderam a atribuição de decretar prontidões e de empregar
a tropa, passando a competência para o ministro do Exército. Posteriormente, o próprio
ministro perdeu essa atribuição, que ficou restrita ao Presidente e aos demais Poderes
da República.
O passo
seguinte foi a decretação do PNDH-1 (Plano Nacional de Direitos Humanos). Com
base nele, criou-se a Comissão de Anistia e iniciou-se a perseguição aos
antigos agentes da repressão. A primeira vítima foi o Cel Carlos Alberto
Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI do II Exército (Destacamento de Operações de
Informações), que foi difamado pela mídia, sem direito de defesa, e processado
na Justiça. A Instituição militar limitou-se a um apoio jurídico discreto e
informal. Seguiram-se os “casos” Avólio e Fayad, igualmente indefesos.
Em
1998/1999, houve o lance decisivo da implantação do Ministério da Defesa. A modernização
das estruturas de Defesa era uma necessidade estratégica, para garantir a interoperabilidade
das Forças, racionalizar os gastos e otimizar a produtividade. No entanto, a
motivação política era revanchista e tinha a intenção de limitar o papel
histórico do estamento militar, o que afetou a configuração e a mentalidade do
novo ministério.
O
ministro do Exército foi surpreendido com a solicitação de um representante da Força
na Comissão de Trabalho, já com agenda marcada para o dia seguinte. Até então, sequer
queria ouvir falar do assunto. Ante o inesperado, atribuiu-me a missão de representar
o Exército, devendo providenciar, no prazo de 24 horas, uma relação das atividades
comuns às Forças Singulares, passíveis de integração. O grupo de trabalho era
chefiado pelo ministro da Casa Civil, Clóvis Carvalho, e incluía o chefe do
Gabinete Militar e representantes do MARE (Ministério da Administração e
Reforma do Estado), Relações Exteriores (ministra Maria Laura), EMFA, Exército
(eu), Marinha (CMG José Antônio de Castro Leal) e da Aeronáutica (um oficial
PTTC). O Gen Cardoso chefiou a subcomissão de atividades comuns passíveis de
integração.
Até
então, as Forças Armadas tinham subestimado o projeto. O Decreto deflagrou um
clima de perplexidade e competição. A Marinha teve uma reação corporativista.
Seu ministro flertava com a solução mexicana, onda há uma Secretaria da
Marinha, autônoma e
paralela
à Secretaria de Defesa. Parecia uma saída inviável, por ser o Brasil banhado
por um único oceano, enquanto o México se defronta com o Golfo do México e o
Pacífico Norte; daí, possuir duas esquadras. As propostas foram centralizadas,
retirando a liberdade de ação do seu representante, que só podia opinar a cada
sessão seguinte, após ouvido o chefe.
O chefe
do EMFA parecia almejar o futuro cargo. O ministro da Aeronáutica, aparentemente,
lavou as mãos e ignorou o processo. Seu representante na Comissão era um
oficial PTTC em regime de rodízio. Portanto, as Forças Armadas defrontaram-se
com o
desafio
despreparadas e enfraquecidas pela desunião. Disso se aproveitou o chefe da
Casa Civil para impor o projeto do PSDB, baseado na ideologia do “Controle
Civil Objetivo”, de Samuel Huntington, que tem como lema: “A chave do cofre e a
caneta em mãos civis”.
Percebi a
tempo a intenção do governo de centralizar no futuro MD os fundos institucionais
das três Forças e seus respectivos centros de Inteligência e de Comunicação Social.
Avisei ao ministro, que conseguiu impedir a fusão dos Centros, mas não pôde
evitar a inclusão do Fundo do Exército na Lei de Diretrizes Orçamentárias.
Contudo,
promovido em março de 1998, fui nomeado comandante da 10ª Bda Inf Mtz
(Recife/PE) e liberado da Comissão, perdendo o contato com o assunto.
A Medida
Provisória que, posteriormente, instituiu o MD, foi redigida sem consulta às
Forças, e conferiu ao novo ministro atribuições inerentes a um comandante civil
interposto entre os comandantes militares e o comandante supremo.
Criado o
MD em 1999, o Poder Militar caiu para o 2º escalão e passou a ser representado
pelos comandantes das Forças Armadas, que são escolhidos pelo Presidente.
Em 2007,
já no último posto da carreira, fui exonerado do Ministério da Defesa antes do
término da minha comissão, após duas audiências em que representei o ministro
Valdir Pires no Congresso e revelei a realidade das ONGs estrangeiras na
Amazônia e os interesses por trás da demarcação da reserva indígena
Raposa-Serra do Sol.
Em
outubro de 2008, a escalada prosperou, com a criação da Comissão da Verdade. A
resistência militar foi aplacada por um acordo negociado pelo novo ministro da
Defesa, em que as investigações seriam estendidas ao período do Estado Novo.
Por óbvio, considerei a solução insuficiente, já que não mais existiam
integrantes do governo Vargas a serem investigados. Mas fui voto vencido e,
para não me sentir omisso, fiz vazar na internet a mensagem que classificava a
Comissão da Verdade como comissão da calúnia. O governo retaliou novamente,
mandando me exonerar da chefia do DGP. A decisão foi absorvida passivamente
pela Força. Houve até comentários de que a minha atitude mais prejudicava do
que ajudava a Instituição. E um companheiro chegou a me desaprovar em
particular, ao comentar que: “Cada um de nós é responsável pelos seus próprios
atos”.
Em 2019,
o governo Bolsonaro, inspirado no discurso dos valores morais, confiou cargos
de confiança a quadros da ativa e da reserva, mas não se preocupou em corrigir
as anomalias remanescentes. Em vez disso, contribuiu para desabonar ainda mais
o estamento militar e reforçar a prevenção política, ao exonerar em massa os
comandantes das Forças Armadas, em março de 2021. Como de costume, as
instituições absorveram o choque com naturalidade.
Portanto,
a reação à crise de 8 de janeiro de 2023 era perfeitamente previsível. É notório
que houve imprevidência dos comandos, ao tolerarem concentrações populares em áreas
de segurança dos quarteis. Ao admiti-las, ficou subentendido para o povo que:
“quem
cala,
consente”. O desfecho em Brasília, onde mais de 900 acampados da praça dos
Cristais terminaram expulsos e confinados pela Polícia Federal, fez desmoronar
a credibilidade institucional e maculou fortemente a imagem da Força.
Não
obstante, continua em curso a estratégia de constrição, agora estendida às demais
forças de segurança. No âmbito do Ministério da Defesa, alguns titulares
fizeram sondagens e tentativas de ingerência ideológica no ensino de formação
militar, mas encontraram resistência cultural, pelo menos, até o momento. É
provável que persista a intenção, por ser a tática mais eficaz de conquistar as
mentes das novas gerações, como ficou provado nas universidades públicas.
No âmbito
militar, parece que, com o passar do tempo, a lassidão alastrou-se, o idealismo
que animava as antigas gerações foi cedendo espaço ao pragmatismo e a passividade
tornou-se rotina. A Instituição perdeu o elã.
“Em nosso
valor se encerra a esperança que o povo alcança”. Se o perdemos, esvai-se a
esperança popular e grassa o tédio. A convocação popular das Forças Armadas é
arquetípica, e sua força emana do inconsciente coletivo. Em crises nacionais
como foram as de 1930 e 1964, aflora o arquétipo e o povo cobra.
A Nação
espera que cada soldado, marinheiro e aviador cumpra o seu dever.